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Semana de 22 e conexões com o Ceará Moderno

Semana de 22 e conexões com o Ceará Moderno

Luciana Eloy, professora e pesquisadora em Arte


Numa Fortaleza que a pouco deixava de ser vila, em fins de século XIX, emergia das classes médias um núcleo de jovens intelectuais ligados à literatura e ao jornalismo com um pensamento dissidente, propositor e novo. A Padaria Espiritual foi uma confraria de caráter secreto formada por intelectuais, comerciantes, boêmios e cidadãos comuns que munidos da palavra, faziam críticas em forma de textos, poemas e literatura, exaltando posições antagônicas à sociedade e ao pensamento da “ideologia do progresso”, emprestado da Europa pela parcela civilizatória do Brasil hegemônico, “do café” na esteira das metrópoles industriais europeias.




Emerge da ramificação dos movimentos abolicionistas, como a Sociedade Cearense Libertadora (1881-1889) e seu jornal O Libertador, articulador do fim da escravidão no Ceará em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea no Brasil. A Padaria Espiritual se inseria no contraponto ao pensamento civilizatório, pós iluminista, pós-revolução industrial, importado da Europa, mesmo período da efervescente e eufórica Belle Èpoque parisiense.

Assim insurgia no Ceará um movimento de espírito moderno antes do moderno em forma de sociedade de letras. Entre os padeiros como se nomeavam, estavam: Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno, Aldolfo Caminha, Henrique Jorge, entre muitos outros, envolvidos em produzir “o pão do espírito”, ou “o pão cultural”, alimento em forma literária que assava com humor e irreverência fornadas de críticas sociais e políticas do recém Brasil república. Adotavam pseudônimos inspirados na linguagem do “populacho”, com vocábulos do tupi-guarani, como “André Carnaúba”, “Bruno Jaci”, “Moacir Jurema” ou “Cariri Baraúna”.



 Na escrita e na poética privilegiavam palavras coloquiais, sempre na língua vernácula, proibindo o uso de estrangeirismos. Suas narrativas e poemas eram construídos no linguajar simples e jocoso, refletindo referências culturais do ambiente bucólico e dos modos de vida das classes populares. Esse era o novo enfoque, em oposição ao estilo de vida afrancesado e europeu que modelava nossa Fortaleza. Os padeiros ao seu modo foram decoloniais, libertaram-se do pensamento eurocêntrico vigente interpretando a realidade cultural brasileira e inventando uma identidade nacional a partir de uma realidade nativa - da experiência do povo e por assim dizer – popular.

Desde aí já se mostravam adeptos do indianismo, claro, com as bençãos de José de Alencar, Iracema e Poti. Mas sem academicismos, munidos de um sentimos de raiz popular como identidade brasileira que só viria a contaminar os artistas e agentes culturais a partir da segunda década do século XX, após a Semana de 22. Pois ainda estava por nascer os Jeca Tatus, os Macunaimas, a Poesia Pau-Brasil e as odes dedicadas às metrópoles em desvairadas pauliceias que cumpriam o papel de pensar “o novo” e a identidade do Brasil “moderno”.

O saudoso professor Gilmar de Carvalho escreveu, “é essa multiplicidade de enfoques, a possibilidade do contraditório e a riqueza das leituras que levam à continuidade das buscas, a arqueologia dos saberes e fazeres”. Por isso trago à tona a Padaria Espiritual, como esse contraditório para refletir sobre o “novo” na produção nacional em pleno centenário da Semana de 22, evento que inaugurou o sentimento moderno no Brasil, produzido pela juventude artística da elite paulistana alimentada pelo futurismo e outros ‘ismos’ da vanguarda europeia.


Foto: Arte: Louise Anne Dutra


A cada novo ciclo de comemoração, é ofertada à Semana revisões críticas que nos devolvem novas leituras sobre o evento realizado em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo que reuniu diversas linguagens artísticas (poesia, literatura, artes visuais, música e arquitetura) sob o signo da modernidade, ainda que tardia. Porém, movimentos literários como a Padaria Espiritual, entre outros periféricos com a mesma força de vanguarda e espírito crítico que atuavam longe dos centros hegemônicos, não ficaram apenas ausentes fisicamente, foram também esquecidos como fontes de referência da memória cultural brasileira.

Sérgio Milliet

A Semana sempre retorna como marco do pensamento de ruptura contra a tradição artística classicizante e estopim das manifestações da cultura moderna no Brasil, que trouxe uma pluralidade de linguagens artísticas, e manifestações criativas em fevereiro de 1922. Os propositores Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, sem deixar de citar a participação do jovem desenhista Di Cavalcanti, longe de ser o artista consagrado, foi o responsável pela criação do cartaz publicitário do evento e por convidar artistas de seu círculo no Rio de Janeiro para a exposição de artes plásticas. A crítica da época dividida entre vaias e aplausos, teve a figura de Sérgio Milliet, crítico de arte e literatura radicado na Suíça, colaborador da famosa revista Lumiere, onde escreveu elogiando com reservas expoentes das artes plásticas como John Graz, Zina Aita, Vicente do Rego Monteiro e Heitor Villa-Lobos. E sem negar preferências, coroou Anita Malfatti (pintora), Victor Brecheret (escultor) as grandes revelações do evento paulista. Sobre as inovações linguísticas dos saraus de poesia e literatura, Milliet se referiu a um “brasileirismo selvagem de estilo”.


Bem, de acordo com a tônica da crítica atual, a Semana foi reducionista em vários quesitos, primeiro pecou por monocracia, concentrando a representação do sentimento moderno brasileiro no eixo Rio-São Paulo-Minas, contando com rarefeitos representantes do Nordeste, entre eles Vicente do Rego Monteiro, artista Pernambucano que durante o evento aprimorava estudos de pintura em Paris e o maranhense Graça Aranha, diplomata e escritor que além organizador, abriu a cerimônia com o eloquente discurso intitulado “A Emoção Estética na Arte Moderna”.

Além da limitada representação nacional, e do enorme protagonismo de representantes ligados à elite cafeicultora paulistana, outra questão que vêm à tona hoje é a escassa representação feminina. Entre as poucas mulheres o evento contou a presença de Guiomar Novaes, pianista clássica consagrada no exterior, que causou dúvidas, questionada por ser representante da música clássica em um evento sobre o moderno. A segunda presença é da pintora mineira Zina Aita,


Homens Trabalhando, 1922 Zina Aita Óleo sobre tela

que veio na comitiva do Rio de Janeiro, convidada dos poetas Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira. De acordo com a pesquisadora Aracy de Amaral, o trabalho de Zina seria “um dos mais avançados da exposição”. Porém a artista passou batida à lupa de Sérgio Milliet que a considerou “mais bizarra que original”, elegendo a paulista Anita Malfatti a grande revelação da pintura, trazida do ostracismo por Mário e Oswald de Andrade, após a demolidora crítica de Monteiro Lobato, “Paranoia ou Mistificação”, sobre sua exposição individual em 1917. Anita caiu nas graças de Milliet, afinal era uma representante de peso da pintura de ruptura assinalada com marcas e cores expressionistas.

O quadro “A mulher de cabelos verdes” (1915-1916), de Anita Malfatti.

Terceira fresta que a atual crítica debate sobre a Semana é a escolha da matriz indígena como representação da identidade moderna nacional, deixando de fora as origens africanas e o negro na formulação desse “novo” que insurgia como espelho de brasilidade. De Macunaíma (Mário de Andrade), passando pela Poesia Pau-Brasil até a Antropofagia Oswaldiana, que de fato foi uma teoria essencial do pensamento filosófico-artístico da vanguarda brasileira, forjada na apropriação da cultura indígena – uma invenção do Brasil pelo Brasil. Somente nas décadas seguintes, anos 1930 e 1940, com romances realistas como Vidas Secas de Graciliano Ramos, O Quinze, de Raquel de Queiroz e as teorias da miscigenação de antropólogos como Gilberto Freire no livro Casa Grande Senzala, nossas raízes negras, e a realidade cultural do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil são alçadas. Porém longe de serem cozidas na sopa antropofágica do modernismo inaugurado em 22, ou no que ecoou a partir da Semana.


Olhar para o passado com ferramentas de leitura do passado apenas, não oferece meios para pensar nosso presente histórico ou vivido. O passado sozinho não reverbera como um motor de reflexão sobre nosso tempo, somos contemporâneos, e necessitamos do passado para friccionar com nosso tempo, produzindo faíscas, e assim confrontá-lo à luz da nossa experiencia atual, para ativar reflexões e transformações hoje.

Novas visões e revisionismos sempre nos colocam no lugar de conhecer e repensar nossa história, que é feita de muitas histórias, oficiais, ou as invisibilizadas que retornam à contrapelo quando as memoriamos. Nesse caso, a linhas da história da Padaria Espiritual se atravessam as linhas da Semana de 22. Os padeiros deglutiram a própria cultura local, uma autofagia devorada pela raiz, devolvendo-a em forma de irreverência e “cearensidade”, mostrando uma estética outra como um modo diferente de inventar o Brasil por dentro.

O que vem a atestar que a criatividade brasileira está nessa diversidade cultural, na riqueza dos muitos “jeito de ser” brasileiros. Nos Brasis hegemônicos e recônditos, nas avenidas e nas fendas, nos Brasis dos heróis anônimos e anti-heróis, no Brasil-África, Brasil-Tupi, Brasil-sertão, Brasil-samba, reisado, congada e baião. É quando olhamos para esses Brasis que espelhamos um mesmo Brasil e nesse reflexo nos reconhecemos brasileiros.

 
 
 

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